segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Qualidade da Alegria

  “Senti que morrer devia ser doce... ficar livre para sempre da vergonha, da angústia, da solidão... de tudo."
 [Érico Veríssimo - Incidente em Antares]


  Quando morava no bairro São Bernardo no fundo da casa da minha vó Tímira a situação financeira da minha família não era boa.
  Como eu era muito criança não tenho dados em minha memória para dizer se meu pai era ruim de finanças ou se seu salário era muito baixo mesmo.
 
(Não podemos descartar as duas coisas em juntas.) 
  Só sei que bem antes do dia 10 (dia do pagamento dele) nossa dispensa de alimentos ficava vazia. 

  Me lembro de duas passagens que ilustram bem a situação critica:

  Minha mãe, já envergonhada de pedir comida para minha vó, me mandou pedir emprestado um pedaço de pão.
  Esperava encontrar minha vó sozinha, mas estavam com ela um tio e tia.
  Iria voltar para traz, mas como perceberam minha presença e perguntaram o que eu queria... 

  -Vó, a mãe perguntou se a senhora empresta um pedaço de pão.

  Meu tio era brincalhão, me chamava de marcha lenta porque eu falava muito devagar.
  Ele disse algo que me marcou bastante, mas não fez por mal, era um cara legal.
 
Eu tinha uns 8 anos, os adultos acreditam que nessa idade as crianças não tem bom entendimento das coisas, eu tinha.
  Entre as coisas que meu tio disse brincando a que me fez meditar foi:

  👤-“A gente só pede emprestado quando pretende devolver.”

  Cortou metade de um pão bengala, deu para eu levar.
  Metade de um pão bengala para dividir em 6... era o que tinha foi o que comemos.
  Entender a frase do meu tio me fez nunca mais pedir comida a ninguém, entendi a vergonha de minha mãe que passou a ser minha vergonha também. 
  Nós não tínhamos como devolver algum dia aquele pedaço de pão.
  Não era um empréstimo era uma caridade.
  Não lembro se foi a primeira vez que pedi por comida, mas estou certo que foi a última. 

  Preferia morrer que mendigar alguma coisa a alguém era como se a vida passasse a me assustar mais que a morte. 

  “Senti que morrer devia ser doce... ficar livre para sempre da vergonha, da angústia, da solidão... de tudo."

  Aprendi a lidar bem com a fome, até hoje posso ficar muitas horas sem comer sem apresentar grande alteração.
  Almoço no máximo até as 8 horas da manhã, só volto a comer alguma coisa consistente (leve) ás 8 horas da noite quando chego do trabalho.
  Para proteger o estomago  geralmente como um pouco de aveia a tarde e meia dúzia de bolachas (é contado) .
  Apesar de comer pouco não sou magro, acho que meu corpo aprendeu a processar os alimentos com muita eficiência.

  Outra lembrança que me veio à mente:

  Ter domínio sobre a fome não aconteceu da noite para o dia.
  Era o esperado dia 10, quando entrava algum dinheiro em casa. 
  Lembro que estudava no período da tarde, já comíamos muito mal pelo menos há uma semana.
  Naquela manhã do dia 10 não tinha absolutamente nada.
  Minha mãe disse que eu não precisava ir à escola, todos aguardaríamos meu pai chegar.
  Do trabalho ele passaria no mercado, traria alguma coisa para comermos.
  Preferi ir à escola.
  Não era pela merenda, na escola não tinha.
  Devia ter ouvido minha mãe...
  Não lembro bem, meu horário acho que era das 13 ás 17.
  Lá pelas 15 horas uma sensação de fome inacreditável.
  Ás 16 estava literalmente surtando.
  Comentei com o colega do lado.

  - Não estou nem ouvindo o que a professora está falando minha fome é tanta que estou com tremedeira.

  Acho que falei alto demais.
  A professora me olhou em uma mistura de espanto e dó.
  Perguntou se estava tudo bem, sorri disse que era brincadeira.
  Ela não acreditou muito, (minha situação crítica devia estar estampada no meu rosto, era uma falência múltipla dos órgãos) mas faltava pouco para a aula acabar.

  Corri pra casa, felizmente meu pai já tinha voltado.
  Minha mãe me deu um prato de arroz, fiquei um pouco decepcionado não tinha nenhuma mistura!? 
  Ela me deu um olhar de “fique tranquilo”, pensei que fosse fritar algumas batatas.
  Nooossa!
  Debaixo do arroz tinha um ovo frito inteirinho só para mim... que alegria inesquecível! 



  Ovos lá em casa sempre eram divididos, que eu me lembre foi a primeira vez que comi um ovo sozinho e não era dia de festa ... como Natal.




  Esse texto era para ter sido publicado em Dezembro, mas acabou ficando esquecido me empolguei com outros temas.
  Um colega havia dito que o Natal não é mais emocionante como no passado.
  O colega também tem histórico de pobreza na infância.
  Disse a ele que o Natal está como sempre foi um dia de FARTURA e PRESENTES, para comemorar o nascimento de JESUS.
  Acontece que hoje em dia (pelo menos para nós dois) os dias de fartura estão mais comuns, isso é maravilhoso.

  Os bens de consumo estão mais acessíveis, poucas crianças precisam esperar com ansiedade o Natal para ganhar um carrinho ou boneca...nem celulares e tabletes. 

  É raro uma escola não ter merenda, pelo menos em Campinas onde moro.
  Hoje em dia tem meios de conseguir comida, se a família é muito carente há varias instituições doando cestas básicas.
  Para situações criticas geralmente tem algum benefício Municipal, Estadual ou Federal.

  Outro ponto a favor é que mesmo os mais pobres reduziram o número de filhos é menos problemático conseguir alimentar 2 ou 3 filhos que 5 ou 6. 

  Por favor, não estou falando que a fome acabou no Brasil, é um território imenso, apenas, apesar de ter muito pra arrumar, da minha infância até os dias de hoje muita coisa melhorou. 

  Enfim.

  Embora a alegria de encontrar um ovo estrelado sob o arroz tenha sido algo inesquecível não é uma alegria que considero de boa qualidade, ela surge de uma situação difícil, triste.
 Não gostaria de voltar a situação de ter tão pouco para comer.
  É como aquela alegria/alívio de tirar um sapato apertado, bom mesmo é usar um sapato bonito e confortável que você “até esquece que está calçando.”

  Não é que o Natal ficou chato são os demais dias que melhoraram e muitos nem percebem o quanto isso é bom.
  São dias bonitos e confortáveis.
  Vou desejar a vocês o que desejei ao colega.

  FELIZ TODOS OS DIAS!





Eu quero o sol
Ao despertar
Brincando com a brisa
Por entre as plantas
Da varanda
Em nossa casa

Eu quero amar
É lógico
Que o mundo não me odeia
Hoje eu sou mais romântico
Que a lua cheia

Você mostrou pra mim
Onde encontrar assim
Mais de um milhão
De motivos pra sonhar, enfim
E é tão gostoso ter
Os pés no chão e ver

Que o melhor da vida 
Vai começar 

[Guilherme Arantes] 
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